Vaticano uma biografia não autorizada
Nenhuma história diz tanto sobre os últimos 2 000 anos deste planeta quanto a da Igreja. Pelos corredores do Vaticano passaram reis, guerras, o melhor da arte e até alguns santos
Era 11 de fevereiro de 1929 e faltava meia hora para o meio-dia quando um Cadillac preto estacionou na frente do Palácio de Latrão, em Roma. As portas do carro se abriram e o homem mais temido da Itália saiu. Era Benito Mussolini, chefe do regime fascista que governava o país. Dentro do palácio – o quartel-general da Cúria Romana, rosto administrativo da Igreja Católica – o papa Pio 11 e seus funcionários mais gabaritados receberam o ditador com apertos de mão. A conversa teve início e Mussolini logo exibiu suas cartas: queria que a Igreja reconhecesse oficialmente o regime – era uma tentativa de neutralizar o adversário Partido Popular. A Igreja também foi clara ao falar de seus objetivos. Pediu o que havia perdido, no século 19, durante o processo de unificação italiana: um Estado soberano. Por volta da 1 da tarde, Mussolini assinou o Tratado de Latrão, que conferia ao papa um território independente dentro de Roma. Em troca, a Igreja reconhecia como legítimo o governo controlado pelo duce.
A rigor, foi nesse dia de inverno, na soturna companhia de um dos mais violentos tiranos do século 20, que nasceu o Estado do Vaticano como ele é hoje: o menor país independente do mundo e a última monarquia absolutista da Europa. Mas o encontro em Latrão foi resultado de uma história muito mais longa, que se enraíza 2 000 anos no passado – desde um tempo em que o papa era apenas o bispo de Roma, uma entre muitas lideranças de uma seita perseguida. Em seu auge, pontífices se declaravam os “senhores do mundo” e desencadeavam guerras com um sinal-da-cruz. Hoje, o papado é a mais longeva organização internacional da história. De onde veio, e onde foi parar, tanto poder? Para desvendar essa história é preciso retornar às origens do cristianismo, quando Roma virou centro de uma seita judaica nascida nas areias do Oriente Médio.
No início, o cristianismo era uma seita de judeus para judeus. Tanto é verdade que, após a crucificação de Cristo, os apóstolos se mantiveram pregando em Jerusalém. A idéia de que Jesus era o tão aguardado Messias, porém, não pegou entre os judeus. Pelo contrário: os apóstolos foram tão hostilizados que se viram obrigados a se espalhar pelo Oriente Médio e pregar para novos ouvidos. Foi assim que o Messias passou a ser descrito como redentor de todos os homens e de todas as raças. O discurso colou. Comunidades chamadas igrejas – do latim ecclesia, assembléia – pipocaram em cidades da Ásia, África e Europa. E logo chegaram ao centro político de então – a tradição católica assegura que Pedro viajou a Roma por volta do ano 42. A vida na capital não era fácil: os cristãos eram perseguidos por se recusar a adorar deuses romanos. O próprio Pedro foi preso e levado ao Circo de Nero, uma arena usada para corridas de carruagens e execuções de traidores construída num terreno pantanoso nos subúrbios de Roma. A região era conhecida como Vaticanus, provável derivação de Vaticus, antiga aldeia etrusca que existia lá. Nesse lugar misterioso e algo sinistro, Pedro foi crucificado e enterrado. Mas, precavido que era, ele já havia escolhido um sucessor, Lino, romano convertido ao cristianismo sobre o qual quase nada se sabe além do nome. E assim a autoridade de Pedro foi transmitida, como continuaria sendo de geração em geração e de bispo em bispo, até chegar a Bento 16, o 2670 herdeiro de são Pedro – ou 2650, como prefere a Igreja, que riscou de sua lista Estêvão, que morreu apenas 3 dias após ser eleito, e Cristóvão, que tomou o poder à força.
Está aí, em resumo, a tese do “primado de Roma”, segundo a qual os bispos romanos são os representante legítimos de Jesus. Mas os fatos que sustentam esse dogma nunca foram unanimidade. Não há provas da passagem de Pedro por Roma. A Bíblia nada diz a respeito – lendas sobre sua viagem e martírio foram coletadas por volta de 312 d.C., na obra de um propagandista da Igreja, Eusébio de Cesaréia. Comprovar essa tradição sempre foi questão de honra para os papas. Na década de 1930, por exemplo, escavações financiadas pelo Vaticano encontraram um antigo túmulo sob o altar da Basílica de São Pedro – que, de acordo com a tradição, foi erguida sobre a sepultura do apóstolo. Junto aos ossos, os arqueólogos acharam símbolos cristãos, como peixes e cruzes. A descoberta não convenceu todos os especialistas. “Havia cemitérios no Vaticano muito antes de Cristo. O túmulo na basílica talvez nem seja cristão – os romanos pagãos costumavam usar símbolos de todas as religiões”, diz o historiador André Chevitarese, da UFRJ, um dos maiores especialistas brasileiros no assunto.
Como a maioria de seus companheiros, Chevitarese também duvida que Pedro fosse um líder absoluto. “O cristianismo antigo não tinha hierarquia rígida. Havia bispos independentes, com opiniões diversas sobre doutrina e fé.” Essa fase “democrática” chegou ao fim em 312, quando o imperador Constantino se converteu – e a religião perseguida passou a ser a favorita do Estado. Foi a partir daí que a Igreja se tornou hierárquica. Doações feitas pelos imperadores a enriqueceram – a instituição do celibato foi feita nessa época, para impedir que a fortuna evaporasse entre herdeiros. A proximidade do poder logo subiu à cabeça do bispo romano – que, até então, não era mais nem menos respeitado que líderes de outras comunidades. No final do século 4, os bispos de Roma adotaram o título de papa, “pai”, em grego, sinal de que se consideravam chefes dos outros. Uma espécie de réplica espiritual do imperador.
Para entender o sentido do documento, temos de voltar no tempo. Ao longo do século 5, a parte ocidental do Império Romano foi invadida e devastada por tribos bárbaras. Em 476, Roma foi conquistada. Na confusão da guerra, o papado foi a única instituição organizada que sobreviveu – o papa Leão Magno entrou para o rol dos gênios da diplomacia por ter liderado o Vaticano nessa transição. Quando o rebuliço acabou, a Igreja era dona do mais poderoso dos monopólios: o conhecimento. Religiosos cristãos eram os únicos europeus letrados no início da Idade Média. Fornecendo conselheiros e legisladores para os reinos nascentes, a Igreja ganhou influência sobre os soberanos bárbaros, que começaram a se converter em 508 – o primeiro foi Clóvis, rei dos francos, que mandou batizar seus exércitos com tonéis de água benta.
O autor da Doação de Constantino provavelmente pertencia a uma classe especial de clérigos eruditos: as equipes de falsários que, entre os séculos 6 e 9, trabalhavam nos escritórios papais alterando e inventando documentos para fortalecer a posição dos bispos romanos. A Doação era uma mistura de testemunho e testamento, supostamente assinado pelo imperador Constantino em 315. O texto conta como o imperador foi milagrosamente curado da lepra graças às preces do papa Silvestre. Em troca, transformou os papas em seus herdeiros legais: “A eles deixo a coroa imperial e o governo de todas as regiões do Ocidente, de agora para sempre”.
Ao longo da Idade Média, a Doação foi aceita como documento verídico e invocada por nada menos que 10 papas para reivindicar poderes políticos. Muitos historiadores acreditam que a fraude foi usada pela primeira vez em 754. Nesse ano, Estêvão 20 viajou para encontrar Pepino, rei dos francos. Estêvão procurava ajuda para transformar Roma e as terras vizinhas em território da Igreja – nos dois séculos anteriores, a capital da cristandade havia sido saqueada e dominada por hérulos, godos, bizantinos e lombardos. Pepino, que havia tomado o trono à força, tentava legitimar seu poder. “A Doação foi apresentada pessoalmente por Estêvão a Pepino. O rei franco aceitou o documento como prova da autoridade dos papas – na sociedade iletrada da época, registros escritos despertavam respeito”, escreve o historiador americano Norman Cantor em The Civilization of the Middle Ages (“A Civilização da Idade Média”, sem tradução em português). Pode parecer estranho, mas os invasores tinham uma admiração supersticiosa por seu antigo inimigo, o Império Romano. Os reis bárbaros sonhavam em igualar os antigos imperadores – e Constantino era um dos mais famosos. Depois de ter a coroa consagrada por Estêvão, Pepino partiu para a Itália. Expulsou os lombardos, que dominavam o país na época, e converteu um pedaço da Itália central em território independente, da Igreja. O coração do novo reino era a cidade de Roma e a área vizinha, que hoje forma o Vaticano. Todos os habitantes dessas regiões viraram súditos dos papas, passaram a lhes pagar impostos, a ser julgados e governados por eles. Assim nasceu o Estado Pontifício, que durou até 1870 (veja quadro à pág 64).
O adversário seguinte dos papas surgiria na forma de um ex-aliado. Na época, a segurança do Estado Pontifício era mantida por tropas do Sacro Império Romano – fundado por Carlos Magno, filho de Pepino. Em troca da proteção, os imperadores exerciam uma pesada influência sobre a Igreja. Na prática, o líder da cristandade era um pau-mandado. Em 1073, surgiu um papa disposto a virar o jogo. Baixinho e de voz aguda, Gregório 70 tinha um temperamento tinhoso, que lhe rendeu o apelido de Santo Satanás. Em um decreto famoso, determinou que os pontífices não só tinham o direito de legitimar soberanos como também podiam depô-los. E declarou que o papa não era só o líder da Igreja mas o “senhor do mundo”. Isso enfureceu Henrique 40, soberano do Sacro Império Romano. Sem pestanejar, Gregório o excomungou. “A excomunhão era uma ferramenta poderosa. O excomungado ficava proibido de ir à missa e receber sacramentos – num tempo em que a religião estava entranhada na vida cotidiana, essa punição era terrivelmente pesada”, diz a historiadora Andréia Frazão, especialista em Igreja medieval. No inverno de 1077, Henrique foi pedir perdão às portas do castelo de Canossa, na Itália, onde o papa se hospedava. O Santo Satanás o obrigou a esperar 3 dias na rua, debaixo de neve, antes de absolvê-lo.
Com o implacável Gregório, o papado passou da defensiva para o ataque. Se antes precisava de proteção, agora se impunha com ameaças de excomunhão. Hoje, os papas se declaram apenas pastores espirituais. Naquela época, eram soberanos políticos com sonhos de hegemonia, dispostos a conquistar o mundo pela cruz e pela espada. A maior prova de poder e ambição veio em 1095, quando Urbano 20 ordenou que os reis cristãos marchassem contra o Oriente Médio para “libertar” Jerusalém, governada por muçulmanos desde o século 7. Cerca de 25 000 peregrinos e guerreiros cristãos começaram a escrever uma das páginas mais brutais da história: as Cruzadas. Durante a tomada de Jerusalém, em 1099, quase todos os judeus e muçulmanos da cidade foram massacrados. Nos 200 anos seguintes, mais 8 cruzadas marchariam sobre a Terra Santa.
Um século depois de Gregório, em 1198, subiu ao trono Inocêncio 30 – o papa mais poderoso da história. Agora o papado era uma potência militar, capaz de contratar os próprios exércitos, e também uma instituição milionária. Camponeses e artesãos europeus eram obrigados a rechear os cofres da Igreja com um décimo de suas rendas anuais, o “dízimo eclesiástico”. A opulência papal era tanta que começou a atrair ódio. Na época de Inocêncio, ganhou força no sul da França uma seita conhecida como catarismo que negava a autoridade do papa e o chamava de filho do demônio. Inocêncio respondeu com fúria ao desafio. Em 1209, convocou uma guerra santa contra a “seita maldita”: aldeias foram queimadas, multidões chacinadas. Para aniquilar o que sobrou do catarismo, Gregório 90, sucessor de Inocêncio, criou em 1233 a Santa Inquisição, tribunal de clérigos com o poder de acusar, julgar e condenar inimigos da Igreja. Com o tempo, o Santo Ofício se espalhou por outros países e passou a perseguir e queimar não só cátaros, mas todos que discordassem dos dogmas católicos – judeus, cientistas, gays. As sociedades cristãs se tornaram perseguidoras e teocráticas. Por outro lado, a estabilidade alcançada na marra alavancou o desenvolvimento que transformaria a Europa na maior potência mundial. Cronistas descrevem o mais terrível e bem-sucedido dos papas como um sujeito afável que gostava de contar piadas. Mas também fiel a sua passagem favorita da Bíblia, em que Deus diz a Jeremias: “Eu vos alcei por cima das nações e dos reinos para vencer e dominar, para destruir e conquistar”.
A influência mundial esmorecia, mas os papas ainda eram príncipes ricos e poderosos em seu território. E, aos poucos, a boa vida afrouxou os costumes da Igreja. O celibato passou a ser um detalhe esquecível e Roma mergulhou numa luxuriosa dolce vita. A carreira eclesiástica virou ímã para oportunistas interessados na fortuna da Igreja. Exemplo máximo foi Rodrigo Borgia (ou Alexandre 60), eleito papa em 1492 graças à pesada propina distribuída aos eleitores – pesada mesmo: eram 4 mulas carregadas de ouro. Bonitão e sedutor, Alexandre tinha duas amantes oficiais, deu festas de arromba no Palácio Apostólico e gerou 7 filhos conhecidos, alguns presenteados com rentáveis cargos eclesiásticos.
Apesar da má fama, os papas da Renascença souberam usar sua riqueza para deixar um legado cultural exuberante. Construíram bibliotecas, ergueram monumentos e transformaram a cidade em um tesouro para os olhos. O maioral entre os papas da arte foi Júlio 20, que subiu ao poder em 1503. Pai de 3 filhas, em vez de rezar missas de batina ele preferia comandar exércitos, vestido em sua armadura de prata. Nos intervalos entre batalhas, o papa guerreiro patrocinou alguns dos maiores gênios da época, como os pintores Michelangelo e Rafael. Com a proteção e os salários pagos pelo Vaticano, eles realizaram obras-primas como as incríveis pinturas no teto da capela Sistina, de Michelangelo.
Foi justamente a admirável extravagância de Júlio que detonou a pior crise na história da Igreja. Em 1505, o papa começou a reconstrução da Basílica de São Pedro, no Vaticano, que estava em ruínas. Para financiar as obras, autorizou todas as igrejas da Europa a vender “indulgências” – documentos que davam absolvição total dos pecados em troca de dinheiro. Isso enfureceu o monge alemão Martinho Lutero, que em 1517 publicou 95 teses denunciando a corrupção da Igreja. Começava a Reforma Protestante. Pouco depois, cristãos da Alemanha, da Holanda e da Europa Central já renegavam a autoridade do papa e a supremacia de Roma. O continente mergulhou em dois séculos de guerras religiosas.
Em 1870, um movimento nacionalista unificou a colcha de retalhos que era a Itália e transformou as terras papais em propriedades do novo Estado. No início do século 20, o sucessor de Pedro estava pobre e reduzido a uma nulidade política. Os palácios do Vaticano caíam aos pedaços, com esgotos entupidos e ratos. Foi nesse aperto que Pio 11 assinou o controverso Tratado de Latrão, que incluía não apenas um território soberano mas também uma doação de cerca de US$ 90 milhões – o suficiente para tirar as contas do vermelho. Foi uma bela virada. Hoje, o Vaticano divulga lucros anuais de mais de US$ 200 milhões, incluindo doações de dioceses e investimentos em empresas européias.
O pacto com Mussolini foi terrível para a imagem do Vaticano. No fim da vida, Pio 11 repensou suas alianças e escreveu uma encíclica condenando o anti-semitismo – na época, Hitler já tinha dado a largada para o Holocausto. Diz a história que faltavam dois dias para a publicação do texto quando ele morreu, em 1939. Numa decisão desastrosa, o sucessor, Pio 12, arquivou a encíclica redentora: ele via no regime nazista um incômodo necessário na luta contra a maior das ameaças, o comunismo. “Mesmo após o início da 2a Guerra Mundial, Pio 12, um papa eloqüente, que fazia milhares de discursos sobre todos os assuntos possíveis, jamais denunciou os crimes nazistas. Adolf Hitler, que se dizia católico, nunca foi excomungado”, escreve o teólogo alemão Hans Kung em Igreja Católica.
Em 1958, a morte de Pio 12 deu início a um dos conclaves mais agitados do século 20. Para impedir a eleição de um conservador, cardeais progressistas votaram em peso em Angelo Roncalli (ou João 23), que quase com 80 anos parecia inofensivo. Nem bem subiu ao poder, o velhinho bonachão surpreendeu até os liberais ao convocar o Concílio Ecumênico Vaticano 20 – o objetivo, nas palavras do próprio João, era “atualizar” a Igreja. Concílios – ou seja, assembléias universais de bispos – ocorriam desde o início do cristianismo e eram um resquício de sua democracia primordial. Mas, desde a Idade Média, as decisões eram controladas ou censuradas pelo tacape do papa de plantão e seus funcionários mais próximos. A proposta radical de João 23 era afrouxar a hierarquia e dar mais poder de decisão aos bispos reunidos.
O concílio trouxe mudanças antes impensáveis. Entre outras coisas, reconheceu o direito de cada indivíduo escolher a própria religião – o que abriu canais de diálogo com outras crenças. A liturgia foi reformada e as missas passaram a ser rezadas nas línguas locais, e não em latim. Mas João morreu de câncer em 1963, deixando o concílio pela metade. Seu sucessor, Paulo 60, permitiu-se dominar pela ala conservadora e barrou a mais importante de todas as propostas: uma revisão do “primado de Roma”, a tese que sustenta a autoridade suprema dos papas. “Houve tristeza e indignação entre os bispos reunidos. Mas ninguém protestou em público”, escreve Kung, um dos teólogos progressistas que participaram do concílio – e também um indignado tardio, que só tornou pública sua revolta a partir de 1970, quando passou a publicar livros criticando a doutrina absolutista do Vaticano.
A luta pela alma da Igreja Católica continua. João Paulo 20, que sempre foi um carismático e popular conservador, não mexeu em doutrinas controversas, como a condenação dos anticoncepcionais. As perspectivas para uma futura reforma do papado são nebulosas. Por volta de 2001, Hans Kung e outros teólogos liberais fizeram lobby por um Concílio Vaticano 30 – mas a idéia foi barrada pela Congregação para a Doutrina da Fé, novo nome para um velho órgão: a Inquisição. Hoje, claro, ela não queima ninguém, mas ainda tem o poder de travar mudanças nos dogmas e censurar teólogos moderninhos, como fez com o brasileiro Leonardo Boff, proibido de falar em público após criticar a postura centralizadora da Igreja. Na época em que o novo concílio foi recusado, o cabeça do Santo Ofício era um certo cardeal alemão, conhecido como intelectual brilhante. Amigo de Kung nos anos 60, ele simpatizava com a ala progressista. Mas mudou de idéia. Afastou-se do antigo companheiro e se tornou porta-estandarte da facção conservadora. Hoje, anda ao lado de cardeais como Giacomo Biffi, que durante o sermão da Quaresma deste ano na Santa Sé afirmou que a vinda do anticristo se aproxima – e que o enviado do Diabo estará disfarçado de “ecologista, pacifista ou ecumenista”. O nome desse cardeal alemão, você já deve ter adivinhado. É Joseph Ratzinger.
Quem colocou ordem na casa foi Gregório 7º. Em 1073, ele determinou que os papas deveriam ser eleitos exclusivamente pelos cardeais. Logo um novo problema surgiu: intrigas e debates faziam a escolha demorar meses. Em 1268, após a morte de Clemente 4º, as reuniões se estenderam por 3 anos. Furiosos com a demora, os habitantes da cidade de Viterbo – onde estavam reunidos os clérigos – trancafiaram o grupo de eleitores dentro de um palácio e os deixaram a pão e água até que chegassem a um acordo.
O papa seguinte, Gregório 10, tratou de prevenir futuras trapalhadas estabelecendo regulamentos rígidos. A eleição, que antes era pública, se tornou secreta. Manteve-se o costume de trancar os cardeais até o fim das votações – daí o nome conclave, do latim cum clavis, com chave. Desde o século 19, a votação é feita na capela Sistina – as cédulas de papel são depositadas no altar, sob as pinturas de Michelangelo. Quando um nome recebe pelo menos dois terços dos votos, está eleito o papa – e as cédulas, queimadas numa lareira do Palácio Papal, produzem aquela festejada fumacinha branca, sinal de que o catolicismo tem um novo líder.
Na verdade, o anel é mais do que apenas uma homenagem. É sobre a figura de Pedro que reside, em última análise, o poder do Vaticano e o do papa. Não fosse ele, o bispo de Roma poderia ser apenas mais um dentre vários líderes católicos. A origem e a justificativa do papado dependem desse pescador da Galiléia. E, para entender o porquê, é preciso conhecer a história dele.
Foi ao longo das andanças pela Galiléia que Jesus pregou sua doutrina e, de acordo com os Evangelhos, realizou grande parte de seus milagres. E o pescador Simão o acompanhou o tempo inteiro. Dentre os doze principais discípulos, ele era certamente o favorito: Pedro é o apóstolo mais citado nos Evangelhos e aparece ao lado de Cristo em vários momentos cruciais de sua pregação. Também é o mais dedicado, ardoroso e o primeiro a reconhecer Jesus como o “Filho de Deus”.
Sua proeminência fica bem clara em uma passagem que, nos séculos seguintes, daria muito o que falar a historiadores e teólogos. De acordo com as Escrituras, Jesus conferiu a Simão um novo nome, Kepa – palavra hebraica que significa “rocha” ou “pedra”. No futuro, o termo seria traduzido para o grego petros e para o latim petrus, até chegar ao português “Pedro”. Para muitos, esse apelido é uma investidura de poder. A narrativa mais completa do fato encontra-se no capítulo 16 do Evangelho de Mateus. Quando passavam pela região conhecida como “Cesaréia de Felipe”, Jesus disse a Simão, diante de todos os apóstolos: “Tu és Kepa (ou Pedro) e sobre essa pedra edificarei minha igreja, e as portas do inferno nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino do céu, e o que ligares na Terra será ligado nos céus”.
Para muitos teólogos, esse trecho é a prova de que Pedro foi escolhido como o maior representante de Cristo sobre a Terra. Ele não seria apenas o líder do cristianismo, mas o porta-voz da vontade divina. Em Um Judeu Marginal, o historiador americano John Meier resume a opinião católica sobre o assunto: “As decisões de Pedro, autorizadas aqui na Terra, são ratificadas no reino do céu. Pedro fica no lugar de Jesus. A autoridade que ele recebe diretamente de Cristo se estende a toda a Igreja, sem restrição”.
Ou seja: Pedro teria sido apontado como primeiro e supremo chefe do cristianismo – e suas decisões deveriam ser consideradas infalíveis, já que têm o aval de Cristo. De acordo com a doutrina católica, as prerrogativas de Kepa foram herdadas por seus sucessores, os bispos de Roma – ou seja, os papas. Mas para entender por que o Vaticano se considera o herdeiro legítimo de Pedro, é preciso dar uma olhada no que ele andou fazendo em suas últimas décadas de vida.
Sua importância como líder do cristianismo primitivo foi gigantesca. Entretanto, pouco se sabe sobre a vida de Pedro - em especial, sobre suas andanças finais. A maior parte das informações a seu respeito vem dos evangelhos, dos Atos dos Apóstolos e das epístolas (ou cartas) escritas pelos primeiros discípulos de Cristo. Outras pistas podem ser encontradas em textos de alguns historiadores antigos, que escreveram nos primórdios do cristianismo, ou pelas lendas que se formaram ao seu redor. E só. Uma antiqüíssima tradição católica garante que o apóstolo viajou para Roma, em meados do século 1, fundando a primeira comunidade cristã da cidade. Essa hipótese é fortemente sustentada por historiadores como Eusébio de Cesaréia – que, embora tenha vivido cerca de dois séculos depois de Pedro, fundamentou sua obra na opinião de autores mais antigos.
Verdade ou não, o fato é que, já no século 2, Pedro era tido pelos líderes católicos como o primeiro bispo de Roma. E mais: de acordo com a Ata dos Mártires – documento composto pelos primeiros cristãos –, foi no território da moderna capital italiana que o maior dos apóstolos encontrou a morte, provavelmente na época do imperador Nero. Segundo Orígenes, um erudito do século 3, Pedro foi preso pelos romanos e condenado à crucificação. Julgando-se indigno de morrer da mesma maneira que Jesus, ele pediu que o crucificassem de cabeça para baixo – e seu desejo foi atendido.
Durante o século 20, investigações arqueológicas feitas a pedido do papa Pio XII descobriram um grande cemitério cristão nos subsolos do Vaticano, sob a atual Basílica de São Pedro. Os arqueólogos concordaram que a necrópole datava do século 1 – e que provavelmente um grande mártir ali fora enterrado. Ninguém sabe quem, mas muita gente jura de pés juntos que era ninguém menos que Simão da Galiléia.
A presença e o martírio de Pedro na cidade foram usados para comprovar o “primado de Roma” – a idéia de que o Vaticano e seu bispo herdaram a liderança cristã, em linhagem direta, do escolhido de Jesus Cristo. Mas não faltou quem questionasse tanto sua posição como “porta-voz” de Cristo, quanto o direito dos bispos romanos de se declararem seus herdeiros.
Há também o famoso episódio da noite em que Jesus foi preso. Conta a Bíblia que Cristo havia reunido seus apóstolos para uma ceia, a última que fariam juntos. Voltando-se para Pedro, disse: “Ainda hoje, antes que o galo cante, tu me negarás três vezes.” E Pedro: “Mesmo que seja preciso morrer contigo, jamais te negarei!” Horas depois, Jesus foi preso e levado à casa do sumo-sacerdote Caifás, onde se reunia o conselho religioso judaico – que acusava Jesus de blasfêmia por se declarar o Filho de Deus. Pedro seguiu o mestre e se misturou à criadagem da casa, para espiar o interrogatório. Alguns servos o reconheceram como um dos seguidores do “nazareno” e Pedro, com medo de ser preso, repetiu três vezes que não conhecia Jesus. Nesse momento, o galo cantou – e, de acordo com o Evangelho de João, Jesus o olhou diretamente. Percebendo o que fizera, o apóstolo foi para a rua “e chorou amargamente”.
Mais tarde, a liderança de Pedro seria criticada por seus próprios aliados. A polêmica mais contundente foi levantada por Paulo de Tarso – outro discípulo ardoroso, responsável por grande parte da disseminação do evangelho em terras “pagãs”. Em sua Epístola aos Gálatas, Paulo acusa Pedro de certa relutância em entregar-se à conversão dos gentios – ou seja, os povos não-judeus. Para Paulo, certos costumes judaicos, como a circuncisão e as restrições alimentares, não deviam ser impostas aos estrangeiros interessados em abraçar o cristianismo.
Esses episódios da vida de Pedro inspiraram nada menos do que os grandes cismas do catolicismo. Com base neles, no século 2, seguidores do gnosticismo – vertente cristã que não aceitava a hierarquia católica – empreenderam uma verdadeira campanha de difamação contra Pedro.
E, em 1050, a polêmica se tornou tão grande que acabou rachando para sempre a cristandade: os líderes religiosos de Constantinopla (atual Istambul, Turquia) repudiaram a autoridade do Vaticano e formaram a Igreja Ortodoxa. No século 16, o monge alemão Martinho Lutero repetiu o gesto, dando origem ao protestantismo. Esses movimentos negavam, antes de mais nada, a autoridade suprema do papado sobre o cristianismo. Para questioná-lo, alguns foram direto à raiz e atacaram a noção de que Pedro fosse o escolhido para guiar os cristãos.
Em várias épocas, ortodoxos e protestantes usaram argumentos idênticos: por causa de seus deslizes e contradições, Pedro não poderia ser considerado o porta-voz de Deus. Não duvidavam de sua importância histórica, apenas não atribuíam a ele a infalibilidade divina nem a autoridade absoluta sobre os cristãos. Outros aceitavam a posição de Pedro como embaixador de Jesus na Terra, mas negavam que esse poder tivesse sido transmitido para os bispos romanos. Sua autoridade, instituída por Cristo, teria acabado lá no século 1, quando o apóstolo foi crucificado de cabeça para baixo.
A divisão da cristandade entre aqueles que aceitam a autoridade papal e aqueles que a renegam permanece até hoje. Mas apesar de ter deixado uma herança ambígua e muitas vezes contestada, o papel histórico de Pedro é inquestionável. Para qualquer cristão, esse patriarca ardoroso e contraditório foi, de fato, o sustentáculo da Igreja em sua fase primitiva – o primeiro líder de uma revolução espiritual que, nos milênios seguintes, mudaria os rumos do mundo.
A primeira Igreja
Certo dia, Jesus passeava pela Judéia, uma das províncias mais pobres do Império Romano – que se estendia da atual Inglaterra ao Iraque. De repente, o Messias olhou para um de seus apóstolos, o pescador Simão, também conhecido como Pedro. E disse: “Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei minha Igreja. Eu te darei as chaves do reino do céu, e o que ligares na Terra será ligado nos céus”. Para o dogma católico, essa passagem do Evangelho de São Mateus significa que Pedro foi escolhido como representante de Cristo na Terra. O primeiro papa.No início, o cristianismo era uma seita de judeus para judeus. Tanto é verdade que, após a crucificação de Cristo, os apóstolos se mantiveram pregando em Jerusalém. A idéia de que Jesus era o tão aguardado Messias, porém, não pegou entre os judeus. Pelo contrário: os apóstolos foram tão hostilizados que se viram obrigados a se espalhar pelo Oriente Médio e pregar para novos ouvidos. Foi assim que o Messias passou a ser descrito como redentor de todos os homens e de todas as raças. O discurso colou. Comunidades chamadas igrejas – do latim ecclesia, assembléia – pipocaram em cidades da Ásia, África e Europa. E logo chegaram ao centro político de então – a tradição católica assegura que Pedro viajou a Roma por volta do ano 42. A vida na capital não era fácil: os cristãos eram perseguidos por se recusar a adorar deuses romanos. O próprio Pedro foi preso e levado ao Circo de Nero, uma arena usada para corridas de carruagens e execuções de traidores construída num terreno pantanoso nos subúrbios de Roma. A região era conhecida como Vaticanus, provável derivação de Vaticus, antiga aldeia etrusca que existia lá. Nesse lugar misterioso e algo sinistro, Pedro foi crucificado e enterrado. Mas, precavido que era, ele já havia escolhido um sucessor, Lino, romano convertido ao cristianismo sobre o qual quase nada se sabe além do nome. E assim a autoridade de Pedro foi transmitida, como continuaria sendo de geração em geração e de bispo em bispo, até chegar a Bento 16, o 2670 herdeiro de são Pedro – ou 2650, como prefere a Igreja, que riscou de sua lista Estêvão, que morreu apenas 3 dias após ser eleito, e Cristóvão, que tomou o poder à força.
Está aí, em resumo, a tese do “primado de Roma”, segundo a qual os bispos romanos são os representante legítimos de Jesus. Mas os fatos que sustentam esse dogma nunca foram unanimidade. Não há provas da passagem de Pedro por Roma. A Bíblia nada diz a respeito – lendas sobre sua viagem e martírio foram coletadas por volta de 312 d.C., na obra de um propagandista da Igreja, Eusébio de Cesaréia. Comprovar essa tradição sempre foi questão de honra para os papas. Na década de 1930, por exemplo, escavações financiadas pelo Vaticano encontraram um antigo túmulo sob o altar da Basílica de São Pedro – que, de acordo com a tradição, foi erguida sobre a sepultura do apóstolo. Junto aos ossos, os arqueólogos acharam símbolos cristãos, como peixes e cruzes. A descoberta não convenceu todos os especialistas. “Havia cemitérios no Vaticano muito antes de Cristo. O túmulo na basílica talvez nem seja cristão – os romanos pagãos costumavam usar símbolos de todas as religiões”, diz o historiador André Chevitarese, da UFRJ, um dos maiores especialistas brasileiros no assunto.
Como a maioria de seus companheiros, Chevitarese também duvida que Pedro fosse um líder absoluto. “O cristianismo antigo não tinha hierarquia rígida. Havia bispos independentes, com opiniões diversas sobre doutrina e fé.” Essa fase “democrática” chegou ao fim em 312, quando o imperador Constantino se converteu – e a religião perseguida passou a ser a favorita do Estado. Foi a partir daí que a Igreja se tornou hierárquica. Doações feitas pelos imperadores a enriqueceram – a instituição do celibato foi feita nessa época, para impedir que a fortuna evaporasse entre herdeiros. A proximidade do poder logo subiu à cabeça do bispo romano – que, até então, não era mais nem menos respeitado que líderes de outras comunidades. No final do século 4, os bispos de Roma adotaram o título de papa, “pai”, em grego, sinal de que se consideravam chefes dos outros. Uma espécie de réplica espiritual do imperador.
Trapaça na Idade Média
Na penumbra da sala, um homem escreve sua obra-prima. Ele usa uma pena, tinta preta e folhas de papiro ou pergaminho. Não há certeza quanto à data, algo em torno do ano 750. Um endereço provável é o Palácio de Latrão. O autor seria um certo Cristóforus, secretário do papa Estêvão 20. Certeza mesmo, só em relação à obra: é a Doação de Constantino, a fraude mais bem-sucedida da história.Para entender o sentido do documento, temos de voltar no tempo. Ao longo do século 5, a parte ocidental do Império Romano foi invadida e devastada por tribos bárbaras. Em 476, Roma foi conquistada. Na confusão da guerra, o papado foi a única instituição organizada que sobreviveu – o papa Leão Magno entrou para o rol dos gênios da diplomacia por ter liderado o Vaticano nessa transição. Quando o rebuliço acabou, a Igreja era dona do mais poderoso dos monopólios: o conhecimento. Religiosos cristãos eram os únicos europeus letrados no início da Idade Média. Fornecendo conselheiros e legisladores para os reinos nascentes, a Igreja ganhou influência sobre os soberanos bárbaros, que começaram a se converter em 508 – o primeiro foi Clóvis, rei dos francos, que mandou batizar seus exércitos com tonéis de água benta.
O autor da Doação de Constantino provavelmente pertencia a uma classe especial de clérigos eruditos: as equipes de falsários que, entre os séculos 6 e 9, trabalhavam nos escritórios papais alterando e inventando documentos para fortalecer a posição dos bispos romanos. A Doação era uma mistura de testemunho e testamento, supostamente assinado pelo imperador Constantino em 315. O texto conta como o imperador foi milagrosamente curado da lepra graças às preces do papa Silvestre. Em troca, transformou os papas em seus herdeiros legais: “A eles deixo a coroa imperial e o governo de todas as regiões do Ocidente, de agora para sempre”.
Ao longo da Idade Média, a Doação foi aceita como documento verídico e invocada por nada menos que 10 papas para reivindicar poderes políticos. Muitos historiadores acreditam que a fraude foi usada pela primeira vez em 754. Nesse ano, Estêvão 20 viajou para encontrar Pepino, rei dos francos. Estêvão procurava ajuda para transformar Roma e as terras vizinhas em território da Igreja – nos dois séculos anteriores, a capital da cristandade havia sido saqueada e dominada por hérulos, godos, bizantinos e lombardos. Pepino, que havia tomado o trono à força, tentava legitimar seu poder. “A Doação foi apresentada pessoalmente por Estêvão a Pepino. O rei franco aceitou o documento como prova da autoridade dos papas – na sociedade iletrada da época, registros escritos despertavam respeito”, escreve o historiador americano Norman Cantor em The Civilization of the Middle Ages (“A Civilização da Idade Média”, sem tradução em português). Pode parecer estranho, mas os invasores tinham uma admiração supersticiosa por seu antigo inimigo, o Império Romano. Os reis bárbaros sonhavam em igualar os antigos imperadores – e Constantino era um dos mais famosos. Depois de ter a coroa consagrada por Estêvão, Pepino partiu para a Itália. Expulsou os lombardos, que dominavam o país na época, e converteu um pedaço da Itália central em território independente, da Igreja. O coração do novo reino era a cidade de Roma e a área vizinha, que hoje forma o Vaticano. Todos os habitantes dessas regiões viraram súditos dos papas, passaram a lhes pagar impostos, a ser julgados e governados por eles. Assim nasceu o Estado Pontifício, que durou até 1870 (veja quadro à pág 64).
Donos do mundo
Na virada do ano 1000, a Europa estava de joelhos. Pela espada dos reis católicos e pelas viagens de missionários, o cristianismo tinha unificado o caleidoscópio cultural do Ocidente numa grande nação espiritual. Na Ásia, porém, a autoridade do papa não era reconhecida. O patriarca de Constantinopla, atual Istambul, considerava-se tão importante quanto seu colega italiano. E ainda havia discordâncias em certos aspectos da liturgia romana, como o celibato e a missa em latim. A rixa explodiu em 1054, quando o papa Leão 90 e o patriarca Cerulário excomungaram um ao outro e romperam relações. Os orientais formaram a Igreja Ortodoxa, enquanto a Igreja Romana se declarou a única, eterna e católica – do grego katholikos, “universal”.O adversário seguinte dos papas surgiria na forma de um ex-aliado. Na época, a segurança do Estado Pontifício era mantida por tropas do Sacro Império Romano – fundado por Carlos Magno, filho de Pepino. Em troca da proteção, os imperadores exerciam uma pesada influência sobre a Igreja. Na prática, o líder da cristandade era um pau-mandado. Em 1073, surgiu um papa disposto a virar o jogo. Baixinho e de voz aguda, Gregório 70 tinha um temperamento tinhoso, que lhe rendeu o apelido de Santo Satanás. Em um decreto famoso, determinou que os pontífices não só tinham o direito de legitimar soberanos como também podiam depô-los. E declarou que o papa não era só o líder da Igreja mas o “senhor do mundo”. Isso enfureceu Henrique 40, soberano do Sacro Império Romano. Sem pestanejar, Gregório o excomungou. “A excomunhão era uma ferramenta poderosa. O excomungado ficava proibido de ir à missa e receber sacramentos – num tempo em que a religião estava entranhada na vida cotidiana, essa punição era terrivelmente pesada”, diz a historiadora Andréia Frazão, especialista em Igreja medieval. No inverno de 1077, Henrique foi pedir perdão às portas do castelo de Canossa, na Itália, onde o papa se hospedava. O Santo Satanás o obrigou a esperar 3 dias na rua, debaixo de neve, antes de absolvê-lo.
Com o implacável Gregório, o papado passou da defensiva para o ataque. Se antes precisava de proteção, agora se impunha com ameaças de excomunhão. Hoje, os papas se declaram apenas pastores espirituais. Naquela época, eram soberanos políticos com sonhos de hegemonia, dispostos a conquistar o mundo pela cruz e pela espada. A maior prova de poder e ambição veio em 1095, quando Urbano 20 ordenou que os reis cristãos marchassem contra o Oriente Médio para “libertar” Jerusalém, governada por muçulmanos desde o século 7. Cerca de 25 000 peregrinos e guerreiros cristãos começaram a escrever uma das páginas mais brutais da história: as Cruzadas. Durante a tomada de Jerusalém, em 1099, quase todos os judeus e muçulmanos da cidade foram massacrados. Nos 200 anos seguintes, mais 8 cruzadas marchariam sobre a Terra Santa.
Um século depois de Gregório, em 1198, subiu ao trono Inocêncio 30 – o papa mais poderoso da história. Agora o papado era uma potência militar, capaz de contratar os próprios exércitos, e também uma instituição milionária. Camponeses e artesãos europeus eram obrigados a rechear os cofres da Igreja com um décimo de suas rendas anuais, o “dízimo eclesiástico”. A opulência papal era tanta que começou a atrair ódio. Na época de Inocêncio, ganhou força no sul da França uma seita conhecida como catarismo que negava a autoridade do papa e o chamava de filho do demônio. Inocêncio respondeu com fúria ao desafio. Em 1209, convocou uma guerra santa contra a “seita maldita”: aldeias foram queimadas, multidões chacinadas. Para aniquilar o que sobrou do catarismo, Gregório 90, sucessor de Inocêncio, criou em 1233 a Santa Inquisição, tribunal de clérigos com o poder de acusar, julgar e condenar inimigos da Igreja. Com o tempo, o Santo Ofício se espalhou por outros países e passou a perseguir e queimar não só cátaros, mas todos que discordassem dos dogmas católicos – judeus, cientistas, gays. As sociedades cristãs se tornaram perseguidoras e teocráticas. Por outro lado, a estabilidade alcançada na marra alavancou o desenvolvimento que transformaria a Europa na maior potência mundial. Cronistas descrevem o mais terrível e bem-sucedido dos papas como um sujeito afável que gostava de contar piadas. Mas também fiel a sua passagem favorita da Bíblia, em que Deus diz a Jeremias: “Eu vos alcei por cima das nações e dos reinos para vencer e dominar, para destruir e conquistar”.
Decadência com elegância
Entre os séculos 13 e 15, o sonho da hegemonia implodiu. As Cruzadas acabaram em fiasco: em 1292, os europeus foram definitivamente expulsos pelos sultões islâmicos. Dentro da Europa, os delírios absolutistas do Vaticano revoltaram até o clero. Foi Lorenzo Valla, um sacerdote, que desmascarou a Doação de Constantino, em 1440. Valla provou que o documento estava cheio de erros históricos – de acordo com os biógrafos antigos, Constantino nunca sofreu de lepra. O prestígio espiritual da Santa Sé foi estremecido – as excomunhões perderam a eficácia e os reis começaram a peitar os papas. Enquanto isso, a educação deixava de ser privilégio do clero, universidades pipocavam pela Europa, a ciência e a arte vicejavam: era o Renascimento.A influência mundial esmorecia, mas os papas ainda eram príncipes ricos e poderosos em seu território. E, aos poucos, a boa vida afrouxou os costumes da Igreja. O celibato passou a ser um detalhe esquecível e Roma mergulhou numa luxuriosa dolce vita. A carreira eclesiástica virou ímã para oportunistas interessados na fortuna da Igreja. Exemplo máximo foi Rodrigo Borgia (ou Alexandre 60), eleito papa em 1492 graças à pesada propina distribuída aos eleitores – pesada mesmo: eram 4 mulas carregadas de ouro. Bonitão e sedutor, Alexandre tinha duas amantes oficiais, deu festas de arromba no Palácio Apostólico e gerou 7 filhos conhecidos, alguns presenteados com rentáveis cargos eclesiásticos.
Apesar da má fama, os papas da Renascença souberam usar sua riqueza para deixar um legado cultural exuberante. Construíram bibliotecas, ergueram monumentos e transformaram a cidade em um tesouro para os olhos. O maioral entre os papas da arte foi Júlio 20, que subiu ao poder em 1503. Pai de 3 filhas, em vez de rezar missas de batina ele preferia comandar exércitos, vestido em sua armadura de prata. Nos intervalos entre batalhas, o papa guerreiro patrocinou alguns dos maiores gênios da época, como os pintores Michelangelo e Rafael. Com a proteção e os salários pagos pelo Vaticano, eles realizaram obras-primas como as incríveis pinturas no teto da capela Sistina, de Michelangelo.
Foi justamente a admirável extravagância de Júlio que detonou a pior crise na história da Igreja. Em 1505, o papa começou a reconstrução da Basílica de São Pedro, no Vaticano, que estava em ruínas. Para financiar as obras, autorizou todas as igrejas da Europa a vender “indulgências” – documentos que davam absolvição total dos pecados em troca de dinheiro. Isso enfureceu o monge alemão Martinho Lutero, que em 1517 publicou 95 teses denunciando a corrupção da Igreja. Começava a Reforma Protestante. Pouco depois, cristãos da Alemanha, da Holanda e da Europa Central já renegavam a autoridade do papa e a supremacia de Roma. O continente mergulhou em dois séculos de guerras religiosas.
Medo da modernidade
Mas a Igreja ainda tinha dias piores “pela frente”. No século 18, a Europa viu o florescimento do Iluminismo, movimento filosófico que colocava a razão e a ciência no centro do mundo e questionava o valor absoluto da fé e das tradições. Pensadores iluministas, como o francês Voltaire, defendiam que todos os homens nascem iguais e têm o direito de escolher a própria religião. Esse novo jeito de pensar passou dos intelectuais para as massas: em 1789, a Revolução Francesa guilhotinou privilégios (e padres) e desapropriou terras da monarquia e da Igreja. Firmava-se o divórcio litigioso entre religião e Estado no Ocidente. De patrono das artes, o papado virou inimigo do progresso, entrando numa fase de pânico apocalíptico em relação a tudo o que cheirasse a modernidade – condenava até ferrovias e iluminação a gás. No século 19, a moralidade rígida era de novo a norma do Vaticano. O papa, que antes acumulava funções de político e soldado, passou a ser visto pelos fiéis como um santo vivo, casto e distante.Em 1870, um movimento nacionalista unificou a colcha de retalhos que era a Itália e transformou as terras papais em propriedades do novo Estado. No início do século 20, o sucessor de Pedro estava pobre e reduzido a uma nulidade política. Os palácios do Vaticano caíam aos pedaços, com esgotos entupidos e ratos. Foi nesse aperto que Pio 11 assinou o controverso Tratado de Latrão, que incluía não apenas um território soberano mas também uma doação de cerca de US$ 90 milhões – o suficiente para tirar as contas do vermelho. Foi uma bela virada. Hoje, o Vaticano divulga lucros anuais de mais de US$ 200 milhões, incluindo doações de dioceses e investimentos em empresas européias.
O pacto com Mussolini foi terrível para a imagem do Vaticano. No fim da vida, Pio 11 repensou suas alianças e escreveu uma encíclica condenando o anti-semitismo – na época, Hitler já tinha dado a largada para o Holocausto. Diz a história que faltavam dois dias para a publicação do texto quando ele morreu, em 1939. Numa decisão desastrosa, o sucessor, Pio 12, arquivou a encíclica redentora: ele via no regime nazista um incômodo necessário na luta contra a maior das ameaças, o comunismo. “Mesmo após o início da 2a Guerra Mundial, Pio 12, um papa eloqüente, que fazia milhares de discursos sobre todos os assuntos possíveis, jamais denunciou os crimes nazistas. Adolf Hitler, que se dizia católico, nunca foi excomungado”, escreve o teólogo alemão Hans Kung em Igreja Católica.
Em 1958, a morte de Pio 12 deu início a um dos conclaves mais agitados do século 20. Para impedir a eleição de um conservador, cardeais progressistas votaram em peso em Angelo Roncalli (ou João 23), que quase com 80 anos parecia inofensivo. Nem bem subiu ao poder, o velhinho bonachão surpreendeu até os liberais ao convocar o Concílio Ecumênico Vaticano 20 – o objetivo, nas palavras do próprio João, era “atualizar” a Igreja. Concílios – ou seja, assembléias universais de bispos – ocorriam desde o início do cristianismo e eram um resquício de sua democracia primordial. Mas, desde a Idade Média, as decisões eram controladas ou censuradas pelo tacape do papa de plantão e seus funcionários mais próximos. A proposta radical de João 23 era afrouxar a hierarquia e dar mais poder de decisão aos bispos reunidos.
O concílio trouxe mudanças antes impensáveis. Entre outras coisas, reconheceu o direito de cada indivíduo escolher a própria religião – o que abriu canais de diálogo com outras crenças. A liturgia foi reformada e as missas passaram a ser rezadas nas línguas locais, e não em latim. Mas João morreu de câncer em 1963, deixando o concílio pela metade. Seu sucessor, Paulo 60, permitiu-se dominar pela ala conservadora e barrou a mais importante de todas as propostas: uma revisão do “primado de Roma”, a tese que sustenta a autoridade suprema dos papas. “Houve tristeza e indignação entre os bispos reunidos. Mas ninguém protestou em público”, escreve Kung, um dos teólogos progressistas que participaram do concílio – e também um indignado tardio, que só tornou pública sua revolta a partir de 1970, quando passou a publicar livros criticando a doutrina absolutista do Vaticano.
A luta pela alma da Igreja Católica continua. João Paulo 20, que sempre foi um carismático e popular conservador, não mexeu em doutrinas controversas, como a condenação dos anticoncepcionais. As perspectivas para uma futura reforma do papado são nebulosas. Por volta de 2001, Hans Kung e outros teólogos liberais fizeram lobby por um Concílio Vaticano 30 – mas a idéia foi barrada pela Congregação para a Doutrina da Fé, novo nome para um velho órgão: a Inquisição. Hoje, claro, ela não queima ninguém, mas ainda tem o poder de travar mudanças nos dogmas e censurar teólogos moderninhos, como fez com o brasileiro Leonardo Boff, proibido de falar em público após criticar a postura centralizadora da Igreja. Na época em que o novo concílio foi recusado, o cabeça do Santo Ofício era um certo cardeal alemão, conhecido como intelectual brilhante. Amigo de Kung nos anos 60, ele simpatizava com a ala progressista. Mas mudou de idéia. Afastou-se do antigo companheiro e se tornou porta-estandarte da facção conservadora. Hoje, anda ao lado de cardeais como Giacomo Biffi, que durante o sermão da Quaresma deste ano na Santa Sé afirmou que a vinda do anticristo se aproxima – e que o enviado do Diabo estará disfarçado de “ecologista, pacifista ou ecumenista”. O nome desse cardeal alemão, você já deve ter adivinhado. É Joseph Ratzinger.
Como escolher um Papa
Hoje, a escolha de um novo papa é um dos rituais mais inflexíveis da Igreja. Mas até o século 11 a coisa era um legítimo pandemônio. Na Antiguidade e no início dos tempos medievais, as eleições eram feitas por aclamação – povo e clero se reuniam e gritavam o nome do sucessor. Funcionava tão bem quanto as competições em que o auditório decide o vencedor. Em 366, por exemplo, dois homens se declararam vencedores: Ursino e Dâmaso. O impasse se resolveu no tapa. Dâmaso, depois canonizado, enviou mercenários para trucidar o rival em uma igreja. Mais tarde, o direito de votar ficou limitado a padres de Roma e bispos das cidades vizinhas. O problema é que, entre os séculos 8 e 11, o clero era controlado por aristocratas que impunham sua vontade na base de subornos e ameaças.Quem colocou ordem na casa foi Gregório 7º. Em 1073, ele determinou que os papas deveriam ser eleitos exclusivamente pelos cardeais. Logo um novo problema surgiu: intrigas e debates faziam a escolha demorar meses. Em 1268, após a morte de Clemente 4º, as reuniões se estenderam por 3 anos. Furiosos com a demora, os habitantes da cidade de Viterbo – onde estavam reunidos os clérigos – trancafiaram o grupo de eleitores dentro de um palácio e os deixaram a pão e água até que chegassem a um acordo.
O papa seguinte, Gregório 10, tratou de prevenir futuras trapalhadas estabelecendo regulamentos rígidos. A eleição, que antes era pública, se tornou secreta. Manteve-se o costume de trancar os cardeais até o fim das votações – daí o nome conclave, do latim cum clavis, com chave. Desde o século 19, a votação é feita na capela Sistina – as cédulas de papel são depositadas no altar, sob as pinturas de Michelangelo. Quando um nome recebe pelo menos dois terços dos votos, está eleito o papa – e as cédulas, queimadas numa lareira do Palácio Papal, produzem aquela festejada fumacinha branca, sinal de que o catolicismo tem um novo líder.
Estado Pontifício
756
Até o século 8, os papas tinham apenas propriedades privadas, casas, palácios, campos aráveis. Mas, em 756, o rei franco Pepino transformou as regiões da Romagna, Emilia e Ravena em território da Santa Sé. Lá, o papa era rei. O Estado Pontifício incluía cidades importantes e ricas, como Bolonha, Orvieto e Roma.
Século 16
Na Renascença, o Estado Pontifício atingiu seu tamanho máximo – o papa Júlio 2º conquistou e anexou as regiões de Ferrara, Módena e Parma. Uma inteligente política cultural e financeira transformou o Estado Pontifício em um território rico, fazendo de Roma a capital intelectual, e não só religiosa, do Ocidente.
Século 19
Após a Revolução Francesa, em 1789, os papas se tornaram governantes retrógrados. Condenavam tudo o que parecesse moderno e proibiram até a construção de ferrovias, pontes e a iluminação a gás no Estado Pontifício – que acabou virando o mais atrasado da Europa. A maior parte do reino papal acabou conquistada por Vitor Emanuel, o aristocrata que unificou a Itália. O último bastião, as terras ao redor de Roma, caiu em 1870. Para saber mais
Biografia Não Autorizada do Vaticano
Santos e Pecadores, a História dos Papas
São Pedro - O primeiro papa
Discípulo favorito de Cristo, guardião das chaves do céu e primeiro bispo de Roma, Pedro foi a pedra fundamental da Igreja Católica Romana. E, por isso, até hoje causa polêmica
No dia em que João Paulo II morreu, foi retirado de sua mão esquerda um dos símbolos mais tradicionais do poder papal: o Anel do Pescador. Trata-se de uma peça forjada em ouro puro, que traz inscrito em alto-relevo o nome do papa – além da gravura de um homem lançando redes de pesca. Um anel idêntico (com o mesmo desenho, mas outro nome) foi entregue para Joseph Ratzinger durante a cerimônia da consagração – junto, é claro, com o poder supremo sobre a Igreja Católica.
A insígnia no anel faz referência ao primeiro homem que, segundo a tradição, teve esse poder – um humilde pescador que iniciou sua vida no litoral da Galiléia. O mais antigo precursor de Bento XVI foi um judeu, nascido na região que hoje forma o Estado de Israel, e se chamava Simão Ben Jonas – mas tornou-se famoso com o nome que, segundo o relato dos Evangelhos, foi-lhe dado por Jesus Cristo em pessoa: Pedro, a “Rocha”.Na verdade, o anel é mais do que apenas uma homenagem. É sobre a figura de Pedro que reside, em última análise, o poder do Vaticano e o do papa. Não fosse ele, o bispo de Roma poderia ser apenas mais um dentre vários líderes católicos. A origem e a justificativa do papado dependem desse pescador da Galiléia. E, para entender o porquê, é preciso conhecer a história dele.
Pedro, o líder da Igreja Católica?
Simão entrou para a história do cristianismo – e do mundo – por volta do ano 28 ou 29. Na época, ele vivia na cidade de Cafarnaum, na costa noroeste da Galiléia. Certo dia, enquanto apanhava peixes, a vida simples e pacata de Simão mudou para sempre. De acordo com o Evangelho de Marcos, um desconhecido aproximou-se pelas margens e o convidou a se tornar seu discípulo. Pedro aceitou a proposta, deixou de lado seu barco e suas redes e seguiu aquele pregador misterioso, que vinha da cidade de Nazaré e dizia ser o Messias enviado por Deus. Seu nome era Jesus.Foi ao longo das andanças pela Galiléia que Jesus pregou sua doutrina e, de acordo com os Evangelhos, realizou grande parte de seus milagres. E o pescador Simão o acompanhou o tempo inteiro. Dentre os doze principais discípulos, ele era certamente o favorito: Pedro é o apóstolo mais citado nos Evangelhos e aparece ao lado de Cristo em vários momentos cruciais de sua pregação. Também é o mais dedicado, ardoroso e o primeiro a reconhecer Jesus como o “Filho de Deus”.
Sua proeminência fica bem clara em uma passagem que, nos séculos seguintes, daria muito o que falar a historiadores e teólogos. De acordo com as Escrituras, Jesus conferiu a Simão um novo nome, Kepa – palavra hebraica que significa “rocha” ou “pedra”. No futuro, o termo seria traduzido para o grego petros e para o latim petrus, até chegar ao português “Pedro”. Para muitos, esse apelido é uma investidura de poder. A narrativa mais completa do fato encontra-se no capítulo 16 do Evangelho de Mateus. Quando passavam pela região conhecida como “Cesaréia de Felipe”, Jesus disse a Simão, diante de todos os apóstolos: “Tu és Kepa (ou Pedro) e sobre essa pedra edificarei minha igreja, e as portas do inferno nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino do céu, e o que ligares na Terra será ligado nos céus”.
Para muitos teólogos, esse trecho é a prova de que Pedro foi escolhido como o maior representante de Cristo sobre a Terra. Ele não seria apenas o líder do cristianismo, mas o porta-voz da vontade divina. Em Um Judeu Marginal, o historiador americano John Meier resume a opinião católica sobre o assunto: “As decisões de Pedro, autorizadas aqui na Terra, são ratificadas no reino do céu. Pedro fica no lugar de Jesus. A autoridade que ele recebe diretamente de Cristo se estende a toda a Igreja, sem restrição”.
Ou seja: Pedro teria sido apontado como primeiro e supremo chefe do cristianismo – e suas decisões deveriam ser consideradas infalíveis, já que têm o aval de Cristo. De acordo com a doutrina católica, as prerrogativas de Kepa foram herdadas por seus sucessores, os bispos de Roma – ou seja, os papas. Mas para entender por que o Vaticano se considera o herdeiro legítimo de Pedro, é preciso dar uma olhada no que ele andou fazendo em suas últimas décadas de vida.
Pedro, o primeiro bispo de Roma?
Logo após a crucificação de Cristo, no ano 30, o pescador da Galiléia passou a chefiar a Igreja recém-nascida. Além de organizar os fiéis em Jerusalém – o primeiro centro da nova religião – , Pedro pregou em cidades distantes como Corinto (na Grécia) e Antióquia (na atual Turquia).Sua importância como líder do cristianismo primitivo foi gigantesca. Entretanto, pouco se sabe sobre a vida de Pedro - em especial, sobre suas andanças finais. A maior parte das informações a seu respeito vem dos evangelhos, dos Atos dos Apóstolos e das epístolas (ou cartas) escritas pelos primeiros discípulos de Cristo. Outras pistas podem ser encontradas em textos de alguns historiadores antigos, que escreveram nos primórdios do cristianismo, ou pelas lendas que se formaram ao seu redor. E só. Uma antiqüíssima tradição católica garante que o apóstolo viajou para Roma, em meados do século 1, fundando a primeira comunidade cristã da cidade. Essa hipótese é fortemente sustentada por historiadores como Eusébio de Cesaréia – que, embora tenha vivido cerca de dois séculos depois de Pedro, fundamentou sua obra na opinião de autores mais antigos.
Verdade ou não, o fato é que, já no século 2, Pedro era tido pelos líderes católicos como o primeiro bispo de Roma. E mais: de acordo com a Ata dos Mártires – documento composto pelos primeiros cristãos –, foi no território da moderna capital italiana que o maior dos apóstolos encontrou a morte, provavelmente na época do imperador Nero. Segundo Orígenes, um erudito do século 3, Pedro foi preso pelos romanos e condenado à crucificação. Julgando-se indigno de morrer da mesma maneira que Jesus, ele pediu que o crucificassem de cabeça para baixo – e seu desejo foi atendido.
Durante o século 20, investigações arqueológicas feitas a pedido do papa Pio XII descobriram um grande cemitério cristão nos subsolos do Vaticano, sob a atual Basílica de São Pedro. Os arqueólogos concordaram que a necrópole datava do século 1 – e que provavelmente um grande mártir ali fora enterrado. Ninguém sabe quem, mas muita gente jura de pés juntos que era ninguém menos que Simão da Galiléia.
A presença e o martírio de Pedro na cidade foram usados para comprovar o “primado de Roma” – a idéia de que o Vaticano e seu bispo herdaram a liderança cristã, em linhagem direta, do escolhido de Jesus Cristo. Mas não faltou quem questionasse tanto sua posição como “porta-voz” de Cristo, quanto o direito dos bispos romanos de se declararem seus herdeiros.
Papas, herdeiros de Pedro?
A relação entre Jesus e seu discípulo favorito nem sempre foi um mar de rosas. Embora tenha sido escolhido para “guiar o rebanho” de Cristo, Pedro também recebeu críticas violentas do mestre. O Evangelho de Marcos conta que, quando Jesus anunciou que sua missão divina era ser preso, torturado e crucificado, Pedro “tomou-o à parte e começou a repreendê-lo”. Jesus então disse: “Afasta-te de mim, Satanás, pois teus sentimentos não são os de Deus, mas os dos homens”.Há também o famoso episódio da noite em que Jesus foi preso. Conta a Bíblia que Cristo havia reunido seus apóstolos para uma ceia, a última que fariam juntos. Voltando-se para Pedro, disse: “Ainda hoje, antes que o galo cante, tu me negarás três vezes.” E Pedro: “Mesmo que seja preciso morrer contigo, jamais te negarei!” Horas depois, Jesus foi preso e levado à casa do sumo-sacerdote Caifás, onde se reunia o conselho religioso judaico – que acusava Jesus de blasfêmia por se declarar o Filho de Deus. Pedro seguiu o mestre e se misturou à criadagem da casa, para espiar o interrogatório. Alguns servos o reconheceram como um dos seguidores do “nazareno” e Pedro, com medo de ser preso, repetiu três vezes que não conhecia Jesus. Nesse momento, o galo cantou – e, de acordo com o Evangelho de João, Jesus o olhou diretamente. Percebendo o que fizera, o apóstolo foi para a rua “e chorou amargamente”.
Mais tarde, a liderança de Pedro seria criticada por seus próprios aliados. A polêmica mais contundente foi levantada por Paulo de Tarso – outro discípulo ardoroso, responsável por grande parte da disseminação do evangelho em terras “pagãs”. Em sua Epístola aos Gálatas, Paulo acusa Pedro de certa relutância em entregar-se à conversão dos gentios – ou seja, os povos não-judeus. Para Paulo, certos costumes judaicos, como a circuncisão e as restrições alimentares, não deviam ser impostas aos estrangeiros interessados em abraçar o cristianismo.
Esses episódios da vida de Pedro inspiraram nada menos do que os grandes cismas do catolicismo. Com base neles, no século 2, seguidores do gnosticismo – vertente cristã que não aceitava a hierarquia católica – empreenderam uma verdadeira campanha de difamação contra Pedro.
E, em 1050, a polêmica se tornou tão grande que acabou rachando para sempre a cristandade: os líderes religiosos de Constantinopla (atual Istambul, Turquia) repudiaram a autoridade do Vaticano e formaram a Igreja Ortodoxa. No século 16, o monge alemão Martinho Lutero repetiu o gesto, dando origem ao protestantismo. Esses movimentos negavam, antes de mais nada, a autoridade suprema do papado sobre o cristianismo. Para questioná-lo, alguns foram direto à raiz e atacaram a noção de que Pedro fosse o escolhido para guiar os cristãos.
Em várias épocas, ortodoxos e protestantes usaram argumentos idênticos: por causa de seus deslizes e contradições, Pedro não poderia ser considerado o porta-voz de Deus. Não duvidavam de sua importância histórica, apenas não atribuíam a ele a infalibilidade divina nem a autoridade absoluta sobre os cristãos. Outros aceitavam a posição de Pedro como embaixador de Jesus na Terra, mas negavam que esse poder tivesse sido transmitido para os bispos romanos. Sua autoridade, instituída por Cristo, teria acabado lá no século 1, quando o apóstolo foi crucificado de cabeça para baixo.
A divisão da cristandade entre aqueles que aceitam a autoridade papal e aqueles que a renegam permanece até hoje. Mas apesar de ter deixado uma herança ambígua e muitas vezes contestada, o papel histórico de Pedro é inquestionável. Para qualquer cristão, esse patriarca ardoroso e contraditório foi, de fato, o sustentáculo da Igreja em sua fase primitiva – o primeiro líder de uma revolução espiritual que, nos milênios seguintes, mudaria os rumos do mundo.
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